Homilia no XII Domingo Comum A 2023
Nenhum passarinho cairá por terra sem o consentimento do vosso Pai.
Até os cabelos da vossa cabeça estão contados!
1. Perguntemo-nos então: é Deus quem faz cair o pássaro ou um fio de cabelo da nossa cabeça? Deus quer o sofrimento ou a morte das suas criaturas? Não! Não é por vontade de Deus que o pássaro cai. Mas é da vontade de Deus que ele não caia sozinho, porque Deus não está longe, impassível ou indiferente à queda das suas criaturas. Ora, se nem sequer um passarinho cai fora das mãos de Deus, quanto mais Deus não estará presente e comprometido com a vida, com a dor e a alegria dos seus filhos? Se Deus é assim tão cuidadoso com os pardais, que se compram com a moeda inferior, quanto mais a nossa vida não estará a salvo nas Suas mãos?! Numa palavra, nada acontece sem que Deus o saiba, o sinta e o consinta. Nada acontece fora do olhar ternurento e amoroso de Deus e das suas mãos benignas!
2. Neste sentido, queridos irmãos e irmãs, não podemos deduzir do Evangelho que tudo o que (nos) acontece seja da vontade de Deus, como se Deus quisesse a doença para uns e não para outros; como se Ele a uns quisesse dar 100 anos de vida e a outros uma morte precoce! Não. Na verdade, há tantas coisas que acontecem no mundo, contra a vontade de Deus: cada ódio acontece sem que o Pai o queira. Cada guerra também. Por isso, os passarinhos continuam a cair, os inocentes continuam a morrer. Dizer que nada acontece «sem Deus», quer dizer apenas que ninguém vive, sofre ou morre sozinho! Deus está atento, participa e toma parte da aventura da minha dor, do meu sofrimento, das minhas perdas, da minha vida entregue à morte. Sim, é verdade: os passarinhos e os nossos cabelos contados por Deus têm de atravessar o vale da morte! Mas não estamos sozinhos nessa travessia e nada do que somos se perderá. Em Deus nada se perderá e tudo se transformará, porque tudo está cheio da Sua presença amorosa. Tudo se guardará: cada fibra, cada cabelo, cada haste de erva, cada passarinho, cada copo de água fresca dado a beber! Tudo isso reencontraremos transformado no coração de Deus.
3. Irmãos e irmãs: o Deus providente, o Pai de Jesus, o nosso Pai celeste não é o Deus que está do lado da saúde ou da doença. Ele não atua nas células do meu organismo, para me dar doença ou saúde, mas intervém nas fibras dos medos, que se aninham dentro de mim. Ele não me salva do sofrimento, mas salva-me no sofrimento. Ele não me livra da travessia da noite escura, mas acompanha-me na escuridão. Ele não me poupa à tempestade, mas dá-me energia e coragem para remar. Ele não me guarda do medo, mas no medo. Ele não me salva da Cruz, mas na Cruz. Ele não me substitui, nem me anula na luta. Ele está no reflexo das minhas lágrimas, para multiplicar a minha coragem. Deus está presente, sim, mas a seu modo: quer salvar-me, mas fá-lo pedindo-me que tenha fé, que confie, contanto que essa fé ponha em jogo todas as minhas capacidades, todas as forças do coração e da inteligência. O Deus que me criou sem mim, não me salvará sem mim! Irmãos e irmãs: precisamos de superar a imagem de um Deus de quem temos medo, para nos reconciliar com a imagem deste Deus amoroso, a quem nos podemos confiar; um Deus crucificado, débil e impotente, diante da violência, do sofrimento e da morte; um Deus que só é omnipotente e invencível no Seu amor por nós!
Valeis mais do que muitos passarinhos!
4. E tu débil, frágil, porventura, já sem um cabelo para cair, tu vales mais do que pensas, vales mais do que esperas. Tu vales, aos olhos de Deus, pelo mundo inteiro. Somos passarinhos que têm o ninho nas mãos de Deus. As mãos de Deus são o nosso porto seguro, de onde podemos zarpar e descolar para o nosso último voo para a eternidade! Não tenhais medo. Quem tem medo, não compre um cão. Compre dois passarinhos. “Vós valeis mais do que muitos passarinhos” (Mt 10,31)!
Por Amaro Gonçalo, pároco de Senhora da Hora em Matosinhos, diocese do Porto
O olhar, a compaixão e a alegria de celebrarmos juntos
É belo olharmos hoje para Jesus e ver como Jesus nos olha. O Evangelho começava por dizer: “Ao ver as multidões, Jesus encheu-Se de compaixão, porque andavam fatigadas e abatidas, como ovelhas sem pastor” (Mt 9,36), isto é, cada uma para seu lado… E que faz Jesus, o Bom Pastor, diante das suas ovelhas dispersas?
Meninos e meninas, pais, avós e padrinhos, irmãos e irmãs: não deixeis que nos roubem a alegria de vivermos juntos a nossa fé. E voltemos, em cada domingo, com a mesma alegria, para celebrarmos juntos e em Festa a nossa Eucaristia.
Sentado à mesa na alegria do Evangelho
Estamos a celebrar o X Domingo Comum, passadas já as grandes festas e Solenidades! Mas a Liturgia de hoje permite-nos retomar os fios e recapitular os desafios das Solenidades da Santíssima Trindade e do Santíssimo Corpo e Sangue de Cristo. Porque nos desafia a conhecer o rosto misericordioso de Deus e porque somos chamados a fazê-lo à mesa da Eucaristia, com o Senhor. Deixemos então que o olhar misericordioso de Jesus pouse e repouse sobre nós, para que nos toque e transforme o coração, para que nos levante do chão, nos sente à mesa e nos torne servidores da alegria do Evangelho.
Homilia no X Domingo Comum A 2023
Há dois fios ou desafios, que ligam a Liturgia da Palavra deste Domingo àquelas que escutávamos nas duas últimas solenidades.
1. O primeiro fio ou desafio é o do conhecimento do verdadeiro rosto de Deus: um Deus, rico em misericórdia! No passado Domingo da Santíssima Trindade, descobríamos que o Deus revelado a Moisés não é um deus duro, como as pedras da Lei, mas «um Deus cheio de misericórdia e fidelidade». É um Deus com entranhas de amor, de compaixão, «um Deus clemente e compassivo» (Ex 34,6). Essa bela imagem de Deus reaparece-nos hoje na Profecia de Oseias.
O Profeta desafiava-nos a procurarmos conhecer o verdadeiro rosto do Senhor e desconcertava-nos com esta confissão final do nosso Deus: “Eu prefiro a misericórdia ao sacrifício” (Os 6,6). Oseias desvenda-nos assim a imagem de um Deus que nos ama com a paixão de um verdadeiro amor e que nada mais no pede em resposta ao Seu amor senão o nosso amor por Ele. Será, porém, Jesus, a revelar, na chama e na luz do Seu olhar de benevolência, o rosto da misericórdia do Pai.
É, pois, muito significativo que Jesus recorra à Profecia de Oseias, para justificar a escolha de Mateus: “Eu prefiro a misericórdia ao sacrifício” (Mt 9,13; Os 6,6). O cobrador de impostos era visto como um pecador insuportável e irrecuperável, a manter à maior distância possível, mas é precisamente esse pecador que Jesus Se aproxima e olha com misericórdia! O desafio de Jesus, perante o escândalo daquela escolha é o mesmo de Oseias: o de aprendermos a conhecer o verdadeiro rosto de Deus, que vê o coração, que vê com o coração e transforma a nossa vida com o Seu olhar.
É possível um arrecadador de impostos levantar-se do seu posto e transformar-se num servidor! O olhar de Jesus transforma os nossos olhares, o seu coração transforma o nosso coração. Então, para conhecer e amar a Deus, não é preciso ser uma pessoa perfeita, mas simplesmente ter um coração misericordioso.
O que mais nos afasta de Deus não é a nossa condição de pecadores, mas a soberba e o orgulho de quem se julga bom e salvo pelos seus méritos. Na verdade, a nossa fragilidade não afasta, antes atrai o olhar misericordioso do Senhor. Este Evangelho desafia-nos, portanto, a aprender a conhecer Deus, desaprendendo e desprendendo-nos de falsas imagens e representações que temos e fazemos de Deus.
Quantas vezes, imaginamos um deus implacável, cuja ira julgamos aplacar com os nossos sacrifícios e penitências, quando afinal Ele é um Deus, que nos precede e excede no Seu Amor. Com Ele, uma simples troca de olhares, muda a vida inteira. Puxemos por este fio e desafio: conhecer o rosto misericordioso do Senhor, sendo misericordiosos como o Pai.
2. Mas há um segundo fio ou desafio,na liturgia deste dia, e que nos religa especialmente à passada quinta-feira: para conhecer verdadeiramente Deus, é preciso aprender a saboreá-l’O. A sabedoria divina é alcançada mais pelo sabor do que pelo saber: «Saboreai e vede como o Senhor é Bom», diz o salmista (Sl 33/34). Por isso, Jesus escolhe a mesa, como lugar privilegiado para a revelação do Seu amor, do perdão e da misericórdia.
Jesus faz da mesa, do comer e do beber, do estar e do conviver com os pecadores, uma escola prática de sabedoria evangélica, onde o verdadeiro saber começa pelo saborear da Palavra e do Pão da Vida. Puxemos por este fio e desafio: aproximando-nos da Eucaristia, alimentemo-nos do Corpo e Sangue de Jesus, que “não é um prémio para os perfeitos, mas um remédio generoso e um alimento para os fracos” (EG 44; AL, 305, nota 351).
3. Caríssimos irmãos e irmãs: depois das grandes festas e solenidades, retomamos agora o Tempo Comum, o tempo quotidiano, em que as surpresas de Deus, passam mais pelos lugares-comuns da nossa vida, quantas vezes à mesa do nosso trabalho, do que pela emoção dos grandes dias e acontecimentos. É um tempo longo, favorável à lenta aprendizagem de Deus! Com estes dois desafios, o da experiência da misericórdia divina e o da participação na mesa da Eucaristia, procuremos conhecer, saborear, ver e mostrar a todos como o Senhor é Bom!
Por Amaro Gonçalo, pároco de Senhora da Hora em Matosinhos, diocese do Porto