invasão russa da Ucrânia está aí multiplicando-se leituras do acontecimento e antevendo-se cenários mais diversos – tudo leituras sobre uma realidade que nos escandaliza em pleno século XXI. Milhares de anos com memória de soluções humanistas, centenas de anos depois da revolução francesa, experiências distintas de implantação de regimes republicanos.
Avanços e recuos do modelo social europeu, nascido das cinzas de duas guerras mundiais; um mundo plano e de comunicação global que nos aponta para as vantagens da comunicação e interdependência mútua.
Neste cenário rebentam bombas em solo “europeu” com uma velocidade superior à do som; cerca de três milhões de pessoas deixam as suas casas e abrigam-se em países vizinhos.
A democracia como modelo e como medo
A Rússia decidiu a guerra e está a fazê-la, com a sua “justificação” e debaixo do seu “interesse estratégico” e diz que ela é essencial para a “defesa dos seus interesses”. Tem uma narrativa política própria e distinta da leitura que os países ocidentais contestam. Seria simples perceber esta discussão se fosse apenas isso que estivesse em causa.
Mas a ruptura está aqui: a mundovisão da Rússia e a dos países ocidentais não tem nada em comum. Putin decide hoje como sempre decidiram os líderes russos. Em cima, no topo da pirâmide que tutela o Estado, define o interesse do momento desenhado por quem com ele percorre o caminho da decisão política.
Um país que na sua história nunca conheceu a democracia e dela tem uma imagem que quer esquecer com a experiência da Perestroika de Gorbachov após a queda do Muro de Berlim.
Se recuarmos na história e olharmos para os 300 anos czaristas dos Romanov que depois da guerra mundial perdida deu origem à União Soviética de Lenin (e dos que lhe seguiram) verificamos que os ideais da revolução francesa (1789) ainda ali não chegaram. Até hoje. E esse é o drama.
Para Putin, o Estado é o bem supremo, e o povo um instrumento do interesse de quem decide. E é ele que decide, baseado no controlo do poder no teatro da Duma onde têm assento os parceiros da sua confiança e de onde são expulsos e colocados na cadeia aqueles que manifestem relutância no apoio à “mãe Rússia”.
Por isso advoga uma “solução final” para a Ucrânia – dedicado que está a “explicar” a este país que afinal ali é a Rússia e que o seu povo, como o russo, está ali para “beneficiar” da glória do “império” que ele sonha reconstruir. Para Putin, o povo está enganado quando dele discorda. E o interesse no diálogo só existe depois do seu interlocutor confessar previamente que está de acordo com ele.
Não percebe Putin nem lhe convém perceber que a legitimidade de um Estado radica no povo que o sustém, também não aceita que um povo nação exige, para existir, um território para ali viver sob a forma de um país. Um país que para ser governado necessita de um Governo. Um Governo que para ser legitimo, depende do apoio do povo que em cada dia constrói a sua história.
Putin não aceita isto. Putin tem medo disto. Esta é a ameaça que Putin – e não a Rússia – está a combater na nação ucraniana.
Arnaldo Meireles