Sílvia Cardoso, nasceu em Santa Eulália, em Terras de Ferreira, bebeu água do rio, cuidou de todos os que precisaram dela e percorreu os caminhos do nosso país, de modo a estar onde era preciso. A Igreja Católica que tanto serviu continua a dar passos lentos no seu reconhecimento. O povo do nosso concelho, esse, reconheceu-lhe em vida a muita admiração que nutria por ela.
Sílvia Cardoso Ferreira da Silva viveu entre 1882 e 1950 e o Papa Francisco declarou-a “verdadeiramente heroica na prática das virtudes cristãs” no dia 27 de março de 2013. Estudou no Porto, no Colégio Inglês do Coração de Maria e, posteriormente, em Sardão, Vila Nova de Gaia, no Colégio das Doroteias. Destacou-se pelo seu empenho e dedicação a atividades de carácter social.
Dinamizou várias instituições: Patronato de Sopa dos Pobres (Penafiel), Internato Margarida Alves de Magalhães (Penafiel), Patronato da Divina Providência (Espinho), Lar das Raparigas e Lar de Santa Rita (Porto), Casa dos Rapazes (Barcelos), Casa de Retiros de Sequeira (Lousada), Casa da Granja (Paredes), Casa da Quinta do Bosque (Amadora) e o Instituto Sant’Ana, ao qual chamava “Caixote do Lixo” por acolher desempregados, inválidos, raparigas desamparadas, entre outros desfavorecidos.
Em 1921, foi criada a Obra Social e Cultural Sílvia Cardoso, cujo objetivo é assistir as populações mais carenciadas do concelho de Paços de Ferreira e dos concelhos envolventes, nos setores da educação, da reabilitação, da ocupação dos tempos livres e da reinserção social do deficiente.
A sua vida foi marcada por duas vertentes de caridade: a espiritual, com um forte sentido de aprofundar a sua fé, e a social, dedicada às obras de auxílio aos doentes, aos pobres e aos marginais.
Sílvia Cardoso faleceu a 2 de novembro de 1950, em Paços de Ferreira. Três anos depois, foi inaugurada a estátua, que se ergue no centro da cidade de Paços de Ferreira, pelo Cardial Patriarca de Lisboa, D. Manuel Cerejeira. Em 1997, iniciou-se o processo de beatificação que tinha dado entrada na Congregação da Causa dos Santos em Roma, em 1992.
Vida religiosa
O momento inicial fundamental da vida de apostolado da Venerável Sílvia Cardoso foi o da sua consagração. Aconteceu em Tuy, na fronteira entre Portugal e a Espanha, na Galiza, como contou o padre Samuel Guedes, à Vatican News, acentuando a profunda ligação de Sílvia Cardoso com a mensagem de Fátima:
“A 1 de abril de 1917 Sílvia Cardoso fez a sua Consagração ao Sagrado Coração de Jesus e ao Apostolado Cristão na Capela das Irmãs Doroteias em Tuy. E há uma proximidade de datas com o 13 de maio de 1917, a primeira aparição de Nossa Senhora em Fátima.
A Sílvia Cardoso quando sabia de algo de anormal ia à procura. Infiltrava-se, metia-se, tinha que saber e, portanto, ela não ficou indiferente a esta proximidade de datas. Ela foi para Fátima, foi ver o que aquilo era.
No dia 13 de outubro de 1917 ela estava em Fátima, ela assistiu ao milagre do Sol. Toda esta envolvência de Sílvia Cardoso e a devoção ao Sagrado Coração de Jesus à qual ela juntou depois a devoção ao Imaculado Coração de Maria fez com que ela tivesse uma ligação grande ao fenómeno Fátima.
Ela conhecia a família dos pastorinhos, ela alojava em casa dos pastorinhos, ela combinava encontros da ação do apostolado em casa dos pastorinhos. Temos fotografias dela com os pais dos pastorinhos. E depois correspondeu-se com a Lúcia.”
Na instalação do hospital
Sílvia Cardoso deu um grande contributo para a instalação e abertura do hospital de Paços de Ferreira, em 1918. Mais tarde, em 1921, a expensas próprias, criou o Asilo-Creche de S. António inaugurado em 1921, um internato de meninas que servia ainda refeições aos mais desfavorecidos, e depois o Colégio de S. José, a ele anexo.
Sustentou-o até ao fim da vida, deixando-o à protecção da sua família. Mantendo a sua função social, o edifício deu lugar, em 1952, ao Externato Sílvia Cardoso e, hoje, a Obra Social e Cultural Sílvia Cardoso mantém o trabalho iniciado por ela, sobretudo junto das crianças carenciadas e também na reabilitação, ocupação dos tempos livres e reinserção social dos portadores de deficiência.
1950 – ano do adeus: a desolação do povo
Acabaria por morrer no final de 1950. Três anos depois foi inaugurada no concelho, pelo Cardeal Patriarca de Lisboa, D. Manuel Cerejeira, uma estátua em sua homenagem, que muitas pessoas procuram para veneração. O mesmo aconteceu com a sua campa no cemitério de Paços de Ferreira.
O processo de beatificação e canonização de Sílvia Cardoso começou em Junho de 1984. Mas, só em 1992 transitou para a Santa Sé, para ser avaliado pela Congregação para a Causa dos Santos. Na origem desta iniciativa esteve sobretudo “a fama de santidade” que a natural de Paços de Ferreira já tinha em vida e que aumentou depois da sua morte.
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O pai (ideológico) de Sílvia, José de Lencastre
Nasceu em 1.1.1885, na freguesia de Santo André de Medim, hoje Sanhoane, concelho de Santa Marta de Penaguião e faleceu em 7.7.1977 em Paços de Ferreira.
Sucedeu nas Casas de seu pai e avô, vindo a ser o Senhor da Quinta do Casal, em Godim, Peso da Régua e, por compra à família, da Casa do Arco, em Viseu. Fez o curso de liceu no Colégio dos Padres do Espírito Santo, em Braga e bacharelou se em Direito, pela Universidade de Coimbra, em 1910.
Casou em 31.7.1912 com D. Maria Haydée Cardoso da Silva, filha do Senhor das Casas do Rego e da Torre (Paços de Ferreira) e do Morgadio de Tapacurá (em Pernambuco Brasil) e de sua mulher D. Joaquina Emitia da Conceição Cardoso, da Casa de Manhude (Amarante), tia paterna do pintor Amadeu de Souza Cardoso.
Perfil político-ideológico
– monárquico, miguelista, acabou por aceitar os dois últimos reis constitucionais
– militante do CADC de que foi presidente (1908-1910)
-membro do Integralismo Lusitano
-participa na “Monarquia do Norte” com “sede” na sua casa de Paços
– candidato ao Senado nas listas do Centro Católico
– presidente da Comissão Administrativa da Câmara Municipal de Paços de Ferreira
– presidente da Câmara Municipal de Paços de Ferreira (1938)
“Não se herdam só os lameiros”
Já vai entender o sentido do subtítulo aqui colocado, até para perceber parte do curriculo do pai de Sílvia. Reflecte um época, no regime monárquico e católico, de economia agrícola. Época que atravessou a transição da monarquia para a república, com profundas transformações (algumas sociais) sobretudo na arquitectura do poder, aqui na nossa terra consolidado em 1927.
Ressaltamos o cargo que José de Lencastre teve no CADC. Aqui se elaboraram as lideranças do nossos país. Sendo um centro “católico” congregou e aprofundou a doutrina social da igreja orientada para a prática política.
Foi assim num ambiente “académico” de nível superior que Sílvia Cardoso encontrou a mundividência cristã que seu pai lhe garantia, podendo ela perceber que a fé é um acto de consequências comunitárias.
Mas não foi só isso. Talvez por providência divina, percorria os corredores da quinta da Torre, alguém irrequieto, teimoso, dedicado e obediente ao pai Alves que dava por nome de Ângelo! Cresceu, estudou, fez-se padre na diocese da qual foi cónego (conselheiro do bispo) e professor de filosofia.
Ãngelo Alves, distinto professor de filosofia no seminário Maior do Porto, e depois na UCP, representou no pensamento português e sobretudo da filosofia portuguesa, uma referência essencial. Sempre atento a todos as tendências (visíveis ou invisíveis) foi sempre um farol e alerta para quem com ele privava, chamando a atenção para visões que poderiam colidir com a sua mundividência.
Não era homem para muitas dúvidas, e qualquer espírito mais ou menos criativo no domínio das ideias vinha “ter a ele de carrinho” e era despachado com “oh meu caro, se pensa assim!”.
Nas aulas de pensamento político tinha dois esteios de análise: a importância do CADC no pensamento católico e, na fisosofia portuguesa, o contributo de Leonardo Coimbra. É merecido dizer que sendo um homem de um rigor extremo, respirava uma simpatia que se manifestava nas boas notas com que premiava os bons alunos que para eles eram todos “desde que não fossem malandros”. Uma delícia de professor que tive o prazer de testemunhar e a quem lhe agradeço, só agora, o 14 que me deu à cadeira de Ontologia. Nem queiram saber o que isto quer dizer!
Os destinos cruzados de Sílvia e Ãngelo
As letras acima desenhadas explicam a situação vivida mas sobretudo a motivação que o cónego Ângelo Alves encontrava no seu íntimo para alimentar as forças que foram necessárias para iniciar o processo de beatificação de Sílvia Cardoso. E foi preciso muita coragem, disponibilidade, dedicação e teimosia.
Podemos esclarecer que Ângelo Alves iniciou este processo absolutamente sozinho, inteiramente sabedor que não teria apoios eclesiásticos para o processo, e certamente que era conhecedor também do desdém com que a sua iniciativa foi vista pelo seu bispo, o famoso D. António Ferreira Gomes.
Mas um Alves nunca desiste, e foi a nossa sorte – a dos pacenses !
Anos 80, férias de verão
Costumava beber uns finos na esplanada do café Amândio, por altura dos três meses de férias de verão, onde com amigos comentávamos a actulidade da coisa. Por sorte, o Dr Ângelo passou perto e fui cumprimentá-lo como sempre fazia. Vim de lá com um “olha lá, não queres passar pelo salão nobre do Asilo António Barbosa” que tenho uns documentos para te mostrar?”
A resposta adivinha-se e deu-me oportunidade para conhecer a nossa terra nas actas da Misericórdia e nos registos das acções de Sílvia Cardoso. Os primeiros documentos para a criação do processo de beatificação de Sílvia Cardoso foram coligidos nesse verão. E todos entregues a Ângelo Alves. Quando lhos entreguei percebi que nas mãos dele chegariam a Roma. Era um puto e acreditei mais no processo do que o bispo. Mas eu também conhecia melhor o Dr Ãngelo…
Isto fica escrito porque sou testemunha do que escrevo. E para dizer claramente que o cruzamento de circunstâncias da infância de Sílvia e Ângelo e relação com José de Lencastre criou uma mundividência que tornou o processo indestrutível.
De facto não herdamos só os lameiros!
Rostos da história e da boa memória
Esta instituição ostenta o nome da “nossa” Sílvia Cardoso. Reconhecida pelo Estado com instituição particular de solidariedade social e, por lei, submetida à tutela da Segurança Social. Tem na sua memória recente figuras que souberam eternizar a memória de Silvia Cardoso.
Alice Baptista
Há pessoas que não precisam de se submeter a eleições (embora o tivessem feito) para liderar organizações. Alice Baptista percorria as ruas da cidade com a autoridade reconhecida por quem se cruzava com ela. E garantia nos olhares trocados com todos que ali seguia a discípula maior de Sílvia Cardoso.
Coube-lhe organizar e adpatar a instituição às novas normas orientadoras que chegaram em catadupa do ministério da Educação e também da Segurança Social. Enfrentou os desafios necessários sem medo e determinação. E com uma confiança no futuro que a todos surpeendia. Quem lhe deu a força?
Maria de Lurdes
Com o país, também a Obra evoluiu muito sobretudo na qualidade e novas exigências curriculares. Foi preciso reforçar os quadros com experiência pedagógicia.
Maria de Lurdes, a directora, acolheu as indicações de Alice Baptista, integrou na instituição as novas normas de funcionamento e redimensionou a instituição para os serviços que hoje presta. A pedra angular na organização promovendo uma transição para o actual modelo de gestão.
Os trabalhadores
São muitos e dedicados. Alguns deles carregam parte da história da Obra na sua memória e ainda hoje são o rosto de uma solução de solidariedade e proximidade nos serviços que prestaram e prestam às famílias que ali entregam os seus filhos .
Os estatutos e o futuro
Nos actuais estatutos houve o cuidado e a atenção necessária para estabelecer que nas listas aos órgãos sociais deve constar um elemento indicado pela família de Sílvia Cardoso, nomeadamente no conselho fiscal. A existência de uma ligação formal à família faz sentido, mas presta-se a eventuais conflitos.
Tal como está, a instituição submete aos sócios – donos da instituição – o sufrágio de listas candidatas aos órgãos sociais, no cumprimento da lei. Como em todas as instituições, o resultado é variável sendo determinado por maiorias circunstanciais. O que tem levado a família a desdobrar-se em contactos para garantir uma maioria sólida em todas as eleições. De facto entende-se esta (pre)ocupação pois importa garantir que o espírito de Sílvia Cardoso seja protegido e não seja ferido em qualquer circunstância histórica.
Ninguém pode acusar a família de apropriação de “propriedade” pois tal não aconteceu – antes o contrário é provado na história da instituição – mas o que efectivamente acontece é que existe a possibilidade (neste momento académica) de uma maioria circunstancial colocar em causa o bem que importa proteger – o bom nome de Sílvia Cardoso.
Dada esta memória e dado o dever que todos nós temos de promover o bom nome (diria marca concelhia) de Sílvia Cardoso parece-me que seria de fazer caminho no sentido de garantir que a Obra Social Sílvia Cardoso, mantendo o estatuto de IPSS, assumisse a natureza de fundação eclesiástica de solidariedade, ficando assim, em último caso, protegida pela autoridade do bispo do Porto e submetida também ao direito canónico – ou seja, ao abrigo da Concordata.
Estou certo que Ângelo Alves não teve tempo para desenvolver esta ideia, ela que até agradaria ao ex-CADC, José Lencastre.
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Por Arnaldo Meireles, sócio da Obra Social Sílvia Cardoso